Rodas de Carimbó contam uma parte da existência - e da
resistência - cultural no Distrito de Icoaraci, no Pará, onde está
localizado o Espaço Cultural Coisas de Negro. O Tambor de Crioula, do
Maranhão, já foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como patrimônio
imaterial do Brasil. Agora, um coletivo realiza uma campanha para a
concessão da mesma chancela ao carimbó.
Lilian Campelo e Rogério Almeida*
A arte milenar da cerâmica marajoara
produzida no bairro do Paracuri proporcionou uma visibilidade além
rio-mar ao distrito de Icoaraci. Em tupi-guarani o nome significa "Mãe
de todas as águas". Assim como outras regiões da cidade de Belém, a baía
do Guajará circunda o lugar, ainda repleto de furos, igarapés e rios. O
rio Paracuri é um deles, assim como o Maguari, o igarapé Livramento, e
tantos outros, de onde é retirada a argila - cada vez mais rara - para a
produção da cerâmica.
É tempo de chuva na Amazônia. A ausência
de saneamento básico impede o acesso dos consumidores do artesanato até o
centro produtor. Limite que é sanado com quiosques de venda na orla
central do bairro. Além da arte marajoara e tapajônica, músicos de
samba, rock, pop e carimbó ajudam a compor a cena cultural do lugar.
Vinte
quilômetros separam o centro da capital do Pará do lugar. A esburacada e
mal sinalizada rodovia Augusto Montenegro é a principal via que leva ao
bucólico logradouro apelidado de “Vila Sorriso”. Edificações ligadas à
Igreja Católica marcam o espaço da orla, repleta de restaurantes e
vendedores de coco.
Já a abandonada Biblioteca Municipal
Avertano Rocha é um resquício dos gloriosos anos do ciclo da borracha. O
chalé integra o portfólio da arquitetura do século XIX do município.
O
hiato social tem incrementado a violência ao redor. Em novembro de
2011, a chacina de seis adolescentes sem passagem pela polícia comoveu o
distrito. Alguns suspeitos estão presos. Mas o caso continua uma
incógnita.
O cais que recebe a produção de hortifrutigranjeiros e
o pescado é o mesmo de onde é possível embarcar pra o arquipélago do
Marajó, e ilhas mais próximas, como a de Cotijuba, que durante muito
tempo abrigou o presídio do Estado. Uma viagem de menos de sessenta
minutos de barco separa o distrito da ilha. A energia recentemente
implantada trouxe mais conforto às pousadas, e incentivou a especulação
imobiliária. No mesmo cais no mês de outubro ocorre a romaria fluvial
que celebra Nossa Senhora de Nazaré.
Após vários processos
históricos, desde os tempos das sesmarias, o distrito de Icoaraci foi
instituído juridicamente na década de 1940. Vez em quando alguns setores
do comércio e da política local ensaiam um movimento separatista de
Belém. Enquanto isso não ocorre, na avenida Dr. Lopo de Castro, nº 1081,
a cada domingo, há 13 anos, o Espaço Cultural Coisas de Negro celebra a
cultura de matriz afroindígena com as rodas de carimbó.
A
percussão é a coluna dorsal da manifestação de matriz afroindígena.
Assim como o tambor de crioula do Maranhão, três tambores (curimbó)
compõem o nipe percussivo ajudado por maracás. Cabe ao curimbó maior a
marcação, enquanto os dois menores solam. Ao contrário da manifestação
maranhense, no carimbó existem instrumentos de harmonia, como flauta
transversal e banjo. Os grupos mais pop´s agrupam violão ou guitarra e
baixo.
Homens e mulheres dançam em movimento circular. Cabe ao
homem o galanteio. Na manifestação maranhense cabe às mulheres a dança, e
aos homens a música e o canto. As vestes são similares. As mulheres
sempre dançam de saia. A camisa de chitão florido é comum na
indumentária dos homens nas duas manifestações.
A matriz rural é
o elemento comum das atrações culturais nos dois estados. A região do
Marajó e do Salgado (município de Marapanim em particular) são as
referências de grupos de carimbó no Pará. Já no Maranhão a manifestação é
encontrada nos bairros da periferia de São Luís, e em inúmeras áreas em
várias regiões do estado marcadas por remanescentes de quilombo. Na
periferia de Belém, no bairro da Terra Firme, migrantes maranhenses à
Rua dos Pretos mobilizam-se em torno do tambor de crioula.
Espaço Cultural Coisas de Negro – espaço de (re) existência Os
apêndices da história deixam claro o preconceito e a criminalização das
manifestações culturais de matriz africana. Códigos de posturas de
algumas cidades proibiam as rodas de capoeira e samba. Era coisa de
malandro. Para (re) existir o samba ganhou o abrigo em terreiros de
umbanda e candomblé, como no caso da Tia Ciata e apelou para o
sincretismo. A visão obtusa de antes tem sido oxigenada em dias atuais
por alguns segmentos neopentecostais.
Assim como os ancestrais,
homens e mulheres negras ou não celebram a cada noite de domingo o
carimbó. A casa do Coisas de Negro é modesta. O sobrado recentemente
passou por uma reforma. A ornamentação faz referência às culturas
africana e amazônica.
A seleção em prêmio do edital de Culturas
Populares Mestre Humberto de Maracanã (cantos de bumba-meu-boi do
Maranhão), promovido pelo Ministério da Cultura realizado em 2008
possibilitou a reforma. O projeto foi contemplado na categoria Grupos
Tradicionais Informais. A iniciativa contou com a ajuda da jornalista e
produtora cultural Luciane Bessa, lembra o proprietário do espaço,
Raimundo Piedade da Silva, mais conhecido como Nego Ray. Um senhor de
média idade de estatura mediana.
O Coisas de Negro – entre o
rústico e o haiteck. O espaço cultural apresenta um ambiente rústico.
Peças de cerâmica, raízes de plantas secas, sementes e fotografias dos
grupos de carimbó impressas em lona de caminhão adornam as paredes com
textura de argila.
Nos rituais de domingo, na parede acima do
palco filmes sobre cultura popular e curtas-metragens produzidos no Pará
são exibidos. O documentário Salve Verequete, falecido mestre do
carimbó, não deixa de ser exibido. O cineasta Luiz Arnaldo assina o
registro sobre a trajetória de um dos protagonistas da arte popular do
Estado. O negro esguio morreu doente e pobre. Somente no fim da vida
contou com uma ajuda pecuniária da prefeitura de Belém. Para sobreviver
vendia churrasquinho. A sina de Verequete é comum entre os artífices do
gênero. A mesma trilha teve o mestre Bento.
Internet, carimbó e cidadania Talvez
nenhum mestre tenha imaginado que as rodas de carimbó ganhariam o
mundo. Hoje elas são transmitidas ao vivo via internet. O Carimbó.Net
também contou com a participação de Luciane Bessa.O empreendimento que
começou no espaço cultural, hoje é projeto de extensão da Universidade
Federal do Pará (UFPA). Ele conta com o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Pará (Fapespa), através do Edital Ações
Colaborativas para a Cidadania Digital, lançado em 2009.
A
iniciativa proporcionou ao Espaço Coisas de Negro a oportunidade de
ministrar oficinas de confecção e percussão de instrumentos para jovens,
além de trabalhar com software livre e gravação de CD. Os frutos desse
projeto podem ser acessados nas redes sociais.
Nego Ray relembra
a experiência que o projeto possibilitou ao visitar uma comunidade
quilombola Laranjituba, localizada no município de Moju, norte do
Estado. “Tivemos a felicidade de gravar a voz de um cidadão de 87 anos
de idade, Mestre Jorge que canta carimbó. Nós levamos todo nosso
equipamento de som. Conseguimos captar o som dele e reproduzimos na hora
o CD. Já tínhamos feito a capa e entregamos para ele,” conta
emocionado.
Ray sublinha que o Mestre Jorge ao ouvir a sua
música sendo tocada pela primeira vez parecia criança dançando. A equipe
ficou maravilhada com aquilo. Acompanhando o mestre vendo todo o
processo e se ouvindo, foi muito bacana, arremata.
Coisas de Negro – os primeiros passos No
início o espaço cultural era um bar. O proprietário explica que o local
existe há 21 anos. E que desde o início das rodas de carimbó passou a
ser denominado de espaço cultural. O repertório musical era composto de
voz e violão ao vivo sempre as sextas-feiras. E a execução de vinis.
Ray
relata que as rodas de carimbó começaram com a apresentação do grupo
‘Curuperê’. Ele recorda que um grupo de pessoas ligadas à música o
procurou. Eles tinham interesse em apresentar o trabalho que era voltado
ao carimbó. Fui convidado a participar. E assim começamos a trabalhar
em cima do repertório autoral.
A partir daí outros grupos
parafolclórico começaram a se apresentar no espaço. A iniciativa trouxe
resultados. Outros locais também começaram a promover as rodas de
carimbó. Até então a divulgação do carimbó era restrita a períodos
festivos. “Antes as apresentações do carimbó ficavam confinadas às
festividades da quadra junina. Com essa nossa atitude de fazer as rodas
aos domingos, as pessoas começaram a aceitar mais o ritmo regional. Hoje
a dança aparece até no horário nobre da televisão, mas foi necessário
que alguém, não só a gente, mas as pessoas que nunca deixaram de
acreditar que um dia essa música iria chegar onde está começando a
chegar. Bem como a teimosia dos grandes mestres que não estão mais aqui”
afirma Nego Ray.
Hibridismo cultural é Coisa de Negro“Não
há conflito entre o regional e o ‘de fora’, pelo contrário, há um
encontro que proporciona uma nova expressão cultural. O hibridismo,
longe de ser visto como uma deturpação da cultura popular é considerado
enriquecedor das práticas culturais por esse segmento que conheceu o
carimbó por meio do Mundé”.
Esta frase, estampada em lona,
ornamenta uma das paredes do Espaço Coisas de Negro. Quem entra
rapidamente percebe que a energia do local congrega diversos campos
culturais. Nego Ray explica, “Uma coisa que a gente percebe aqui é a
mudança de comportamento das pessoas. As que são voltadas para outras
tendências musicais, quando adentram no “Coisas de Negro” começam a se
integrar. As meninas do rock que já vêm aqui e vestem as suas saias.”.
O
jornalista Ismael Machado sugeriu ao Nego Ray o projeto Coisas do Rock.
Na época estiveram no palco as bandas, Arcano 19, Cravo Carbono e
Norman Bates. “Retornamos agora, tem um ou dois anos com apresentações
de grupos de rock. No dia 2 de fevereiro teremos The Smiths Cover e Los
Hermanos Cover. Além dessa apresentação, antes teremos no dia primeiro
de fevereiro o Buscapé Blues, com uma apresentação de música autoral”
explica Ray.
O espaço cultural sempre esteve aberto a outros
ritmos e estilos, mas não é só o local que congrega outras influências
musicais. O grupo de carimbó Mundé Qultural é prova dessa efervescência
contemporânea. Utilizando instrumentos como a guitarra, o baixo e
percuteria, este último criado pelo próprio grupo é um conjunto de
instrumentos como: prato, banjo, alfaia, pandeiro e caixa de bateria.
O
grupo mescla experimentações sonoras envolvendo o popular e o
contemporâneo. Nego Ray fala que eles deram uma nova roupagem à música
‘Moleque do Paracuri’ da banda Novos Camaleões, “Fizemos um arranjo bem
legal, uma pitada regional com uma linguagem rock ‘n roll”. A mesma
linha segue o grupo Lauvaite Penoso. Algo que lembra a turma que
envenenou a cena cultural do Recife na década de 1990, isto para não
falar de Raul Seixas, Mutantes e a Tropicália.
Hoje, o Espaço
Coisas de Negro abriga as mais diversas tendências e experimentações
sonoras. Para Nego Ray a procura das pessoas pelo espaço denota uma
carência de locais para a música autoral. “O que eu vejo hoje no ‘Coisas
de Negro’ era o que um tempo atrás acontecia no teatro Waldemar
Henrique. O teatro abria as portas para que as pessoas pudessem fazer as
suas experiências musicais”.
Trio Chamote – direto da costela do Coisas de NegroO
ensaio começou umas 7hs da noite. A batida leve na baqueta e o contar
do “1, 2, 3, e...” marca mais um recomeço da música que está sendo
ensaiada. O local é no Espaço Cultura Coisas de Negro e o celular grava o
áudio do ensaio. O ritmo é o lundu. Também de matriz africana. Ao
contrário do carimbó a sonoridade é marcada pela suavidade e a cadência
em pausas leves e fortes marcadas pelo batuque. No caso é tocado no
bumbo da bateria. A dança é um ritual de sedução.
O ambiente
‘Coisas de Negro’ inspira musicalidade e o espaço também contribui para
o surgimento de novas parcerias, a partir de encontros e vivências com
pessoas e grupos musicais plurais, como a diversidade do Trio Chamote.
Composto
por Silvio Barbosa (sopro), Luizinho Lins (banjo) e Charles Matos
(bateria), eles utilizam o espaço para ensaiar as cinco músicas já
criadas. O trio irá se apresentar oficialmente no Teatro Waldemar
Henrique na abertura do show do guitarrista Pio Lobato. Data a
confirmar.
Chamote e Coisas de NegroO Trio ainda é
novo, os músicos é que são velhos conhecidos do ambiente, desde os
tempos do nascimento das rodas de carimbó. Todos moram em Icoaraci. O
nome do Trio vem de um dos processos de produção artesanal da cerâmica.
Chamote é o nome dado aos restos de cacos de peças antigas da cerâmica
marajoara, que são aproveitadas e misturadas ao barro natural para a
criação de novas peças.
É desta realidade cotidiana e de
vivências que os músicos criaram o estilo do trio. Charles, autodidata
com 22 anos entre baquetas e pratos explica o som que produzem: “O
Chamote surgiu de um sonho antigo de trabalhar a música regional
folclórica inserindo uma roupagem contemporânea, com efeitos sonoros e
linguagem jazzística, que consiste na improvisação musical”.
Luizinho
explica que o Espaço Coisas de Negro também ajudou a construir o
Chamote “Aqui a gente busca conceito, tem as rodas de carimbó, todo esse
ambiente ajuda a compor”.
A construção do conceito musical do
Chamote partiu de algumas coincidências. Todos os integrantes possuem
pesquisas distintas sobre os instrumentos que tocam e ritmos amazônicos,
contempladas com bolsa de estudo no Instituto de Artes do Pará (IAP). O
horizonte de trabalhar com ritmos regionais mesclando uma pegada mais
contemporânea foi o que os uniu.
O espaço Coisas de Negro foi
determinante para o encontro e a realização do projeto, como afirma
Silvio, “Talvez se não fosse o ‘Coisas de Negro’ o Chamote não iria se
formar. Os ensaios no espaço, a convivência nas rodas de carimbó e a
troca de impressões com o Ray ajudaram a cimentar a ideia” pondera o
músico.
Luizinho confirma: “Se eu estivesse em outro espaço,
talvez eu estaria tocando com outro grupo, e só tocando, não estaria
fazendo experimentação sonora”.
Para o artista, a relação que se
dá no espaço é de solidariedade, “Quando o Ray cede o espaço para gente
ensaiar não é necessário uma assinatura em papel, e toda essa
formalidade, as relações são baseadas no aperto de mão”.
Cultura popular como patrimônio imaterial do BrasilO
Tambor de Crioula, o primo do Maranhão já foi reconhecido pelo
Ministério da Cultura como patrimônio imaterial do Brasil. No Pará um
coletivo realiza uma campanha para a concessão da mesma chancela ao
carimbó. Autores e intelectuais atuam em frentes diferentes.
Uns
tratam da burocracia, enquanto outros organizam memorial sobre os
grupos e nomes relevantes de mestres do ritmo, onde flutuam Verequete,
Lucindo, Dico, Cizico e Bento, entre outros. E organizam eventos
dentro e fora do estado.
A cada domingo, além do Coisas de
Negro, os ancestrais são festejados por percussionistas nas manhãs da
Praça da República, no Centro de Belém. Ali entre mangueiras, e próximo
ao cheio de pompa e circunstâncias Teatro da Paz, não raro os músicos
entoam a canção mais popular do gênero: “Chama Verequete! Velejar.
Velejar”.
*Lilian Campelo é jornalista. A folkcomunicação
foi o tema de seu trabalho de conclusão de curso. Rogério Almeida é
autor do livro "Pororoca pequena - marolinhas sobre a(s) Amazônia (s) de
cá".
(Extraído da Agência Carta Maior)